Há poucos minutos, num vídeo da feiticeira do comunismo Rita Von Hunty, fiquei a saber que Glamour e Gramática têm a mesma origem etimológica. Ela cita o prefácio a Todos os Contos, de Clarice Lispector, escrito pelo Benjamin Moser, e tem graça como o título — Glamour e Gramática — parece, a montante, um semear de conceitos sem nenhuma ligação entre si, até um certo paradoxo entre uma ideia intelectual e outra material, mas passadas umas páginas a chocante relação entre os dois está alojada na cabeça e, mais uma vez, a nossa visão do mundo mudou um bom bocado por causa de umas letrinhas.
Até 1700, na Escócia, existia uma palavra, Grammar, para a mistificação — a feitiçaria até — que a classe dominante exercia — instituía — sobre a classe trabalhadora — pobre (para não faltar à predileção pelos travessões). Herdámos duas palavras: grammar é uma transformação do mundo operada pela linguagem e glamour, um encanto visual concedido a alguma coisa. O facto atingiu-me, antes de mais, porque as gramáticas sempre me foram apresentadas sem glamour nenhum. Fossem elas da língua portuguesa, do inglês (a minha geração deve ter o título Brush Up Your Grammar como a ervilha por baixo dos mil colchões), ou mesmo do francês, a língua do requinte. Ainda me custa crer que calhamaços de regras para a escrita e situações glamourosas têm algum grau de parentesco, quanto mais, que sejam filhas da mesma mãe.
Em segundo lugar, não acredito que a classe dominante alguma vez tenha exercido uma encantamento sobre os trabalhadores, porque o que constato é contraditório com isto. Estamos em Lisboa, nos 2020’s e a raíz de Santos Populares e sardinhas é a mesma, a da mistificação — a feitiçaria até — da classe trabalhadora sobre a outra, que já foi dominante e que segue privilegiada.
Tendo feito uma tristemente breve incursão pelos Santos Populares, posso assegurar que não há festa nem festança onde não vá a Constança. E ela faz-se acompanhar do Martim, do Dinis, da Caetana, da Pimpinha, da Tareca, da Tecas e da Bá. Vão todos muito agarrados uns aos outros, a celebrar bastante a vida, e sabem que aquilo é coisa para durar, metem uma malhinha pelas costas, que assim já não se constipam.
Há meia dúzia de anos, fora da Vila Berta, os Santos eram populares, no sentido em que alguma arte é pop e em que outra é mainstream: eram só povo, gente mesmo cá de baixo, da classe operária, fabril ou assalariada de computador. A sardinha ia pelo mesmo caminho, pelo caminho que sempre teve: à mesa de gente rica punham-se peixes grandes e carnes; para quem só tinha a força braçal, ficava o peixe pequeno a que se chamava sardinha indiscriminadamente. A classe trabalhadora e a sardinha são praticamente sinónimos e assim já se percebe que as festas — os Santos POPULARES — que mantinham a gente miúda entretida* exigissem sardinha.
Escrevi há umas semanas sobre esta relação muito próxima entre a sardinha e os Santos Populares para o SAPO 24, um fenómeno que nos leva a comer sardinhas ainda que não estejam necessariamente gordas, como são boas. A nossa relação com este peixe, que foi para tantas gerações um dos poucos alimentos, parece-me ser visceral. Disto e de que está a ser elitizada não tenho dúvidas.
Este ano, nos tais arraiais que brevemente frequentei, pediam 2€ por uma sardinha. E antes de argumentarmos com a inflação e a guerra, passemos os olhos por este arranque recente do Expresso: “Diga aí que os pescadores passam a noite no mar para vender o cabaz de sardinha a 20 euros. E diga que um cabaz são 400 sardinhas. Quando lhe pedirem dois euros por uma sardinha nos Santos Populares já pode fazer contas e perceber que nós somos quem ganha menos com isto. É injusto”. É um pescador de Matosinhos a falar.
O mercado, essa entidade que ninguém viu e que reina, fez o seu trabalho. Houve muita coisa que inflacionou o preço da sardinha nos arraiais, da cerveja, dos próprios copos em que se bebe cerveja e, enfim, de Lisboa. Nenhuma delas foi pop. Nem as dúzias de pessoas que metem férias em junho para pôr prego a fundo na saída das marchas para a Avenida, ou as outras que, chutadas do centro, vêm dos confins, mais que arrabaldes, para as festas do bairro — da cidade — onde se criaram. “Mas não é um direito humano viver nas Avenidas Novas.”
O feitiço dos Santos Populares e das sardinhas faz-se pagar e, talvez, o popular dos santos e das sardinhas venha a ser só uma vaga referência ao passado, ligeiramente ilustrada a fotografias de película, das que já nem se percebem bem e onde as pessoas parecem todas muito mais adultas do que nós.
Para que fique claro que não sou eu que invento esta feitiçaria da classe pobre sobre a privilegiada, dou-me ao trabalho de bater texto: um parágrafo inteirinho que copio para aqui (que também eu sou maravilhada pelo trabalho braçal) do Era Bom que Trocássemos umas Ideias Sobre o Assunto, de Mário de Carvalho. É a definição desse encantamento e aparece quando o narrador descreve um restaurante algures na Rua das Beatas, de localização misteriosa — “aposto que se o leitor o procurar não o encontrará sem a minha ajuda”.
“Um cidadão desprevenido que por ali entrasse, pedindo-se-lhe um comentário desapaixonado, não deixaria de dizer que o Solar do Macedo era uma tasca infecta. E teria razão. Essa era de resto a opinião geral dos frequentadores das quintas-feiras, a quem a sordidez e a pobreza do local agradavam de sobremaneira. Eles estavam fartos de bifes, queriam era peixe frito; estavam fartos de Periquita, queriam eram tintol, mesmo com um picozinho; estavam fartos de napas almofadadas, queriam era cadeiras de pau, ou bancos com um buraquinho redondo de enfiar o dedo. Estavam fartos? Julgavam que estavam. Qualquer deles sofreria um indignado desgosto se o obrigassem a almoçar todos os dias no Solar… por oitocentos escudos.”
Depois disto, já esta linha que acrescento é muito. Retiro-me: até à próxima.
*onde se lê entretida, deve ler-se sem pensar muito em comunismos
Neste Frigobar —
Rita Von Hunty
Já não é a primeira vez que cito Rita Von Hunty, drag comunista. E porque haveria de refrear as citações se cada vídeo dela é uma batelada tão grande de informação e pontes com sociólogos, críticos de cultura, filósofos e outras rendeiras do pensamento?
@rita_von_hunty ⧫ Rita no Youtube
Era Bom que Trocássemos umas Ideias Sobre o Assunto, Mário de Carvalho
É um manual sobre literatura e, em conjunto com Quem Disser o Contrário é Porque tem Razão, é um curso de escrita. Não para escrever como Mário de Carvalho — isso não sei como se aprende —, mas para pelo menos para conseguir dizer duas seguidas sem um monumental espalho dos que provocam vergonha até nos outros.
Este romance é de 1999, mas fala do iWatch; uma das personagens aconselha um poeta a escrever mais como o Alberto Hélder; outra, jornalista, assiste a um momento histórico para que nenhum académico da profissão estava preparado: finalmente, o bispo mordeu o cão.