A gente acha que tem de tudo aqui em Lisboa, mas no meu círculo próximo não há alguém que já tenha visto um piano a mexer-se. Eu só vi este fim de semana e foi em Bragança. Da meia dúzia de pessoas que assistiram ao transporte de um piano de cauda, só as duas almas de Lisboa se deixaram impressionar. Aparentemente é normal em Bragança ver mudar um piano de sítio com a facilidade de biblô que deixou de ficar bem na sala.
Fui a Bragança para moderar uma conversa sobre pão português no seminário Deixar o Pão Falar. Falou-se da capacidade de padeiros informados e curiosos fazerem pães mais saudáveis e da procura massiva da indústria por farinhas corrigidas com químicos; alinhavou-se uma ideia do que é o pão bragançano, levantaram-se dúvidas sobre o que são os pães portugueses ou, pelo menos, sobre a ideia de pães regionais.
Como dizia a dada altura Amândio Pimenta, que tem a distinção MOF atribuída em Fraça aos padeiros embaixadores do pão e do seu oficio, os microorganismos locais que influenciam a fermentação serão sempre distintos de entre países, cidades e aldeias. O que implica que, apesar se adotarem determinadas receitas ou estilos de pão, há um ar dos sítios e dos momentos que sempre modela o pão.
Um zeitgeist da padaria? Mais do que isso: esta mesma fermentação pode levar-nos do tempo de agora para o tempo que já passou. No programa Refeitório, Mário Rolando, padeiro praticamente filósofo, deu o exemplo do pão que um padeiro do Algarve cortou à sua frente em Lisboa e que lhe lembrou, só pelo cheiro, do pão que a sua bisavó fazia no Algarve. É importante perceber é que isto não tem nada de místico e de “cozinhar com amor”. Este cheiro e outros aspetos do pão (as tais características organoléticas) são resultado da influência da água ou do ar locais na fermentação, são sensoriais e podem ser descritas e fixadas.
A par deste arsenal de microorganismos único numa frementação natural e prolongada, há as receitas portuguesas. Pode duvidar-se da sua subsistência hoje, mas parece-me difícil duvidar de existem pães portugueses. Há livros onde estão identificados alguns e eles ainda ressoam por aí — ainda que adulterados pela química, que facilita a vida aos padeiros com farinhas formuladas à prova de variações de temperaturas e humidades. Enfim, à prova do incerto. Com farinhas corrigidas substitui-se a falta de formação aprofundada para a profissão de padeiro, enquanto ofício essencial à saúde. Faz-se pão rápido, retira-se o tempo da equação e, como me respondeu o profeta do pão numa entrevista de 2018, “o tempo é o melhor ingrediente que nós temos na nossa padaria”.
Onde se tira o tempo e se põem farinhas corrigidas recebe-se broas de milho, pão de testa, trigasmilhas, regueifas, carcaças, moletes e bicas tão aditivadas como a gasolina. São apenas uma vaga referência, uma lembrança, não são a coisa, não chegam. Falta-lhes o gesto que guarda conhecimento e a integralidade do produto — no cereal, no cheiro e no sabor, na forma como se vai aguentando ao longo dos dias.
A Mouette Barboff, provavelmente a grande pesquisadora do pão português até hoje, notou que no Minho, as mulheres tinham o costume de vincar a diferença entre o pão robusto que coziam e outros, mais pequenos e leves, que compravam nas padarias. Ao que faziam chamavam pão legítimo.
Não era só uma questão de ingredientes ou receitas, era também uma questão de fazer repetido e transmitido — digamos sem muito rigor, de tradição. A lógica era, em boa parte, matriarcal e poderosa, ou não teria sido proibida como foi durante o Estado Novo. As mulheres sem licença estavam impedidas de comercializar pão, o que faziam clandestinamente. Escreve a antropóloga, em O Pão em Portugal, sobre os anos 1950: “as mulheres defendiam o direito a praticar essa actividade que tinham herdado das suas mães, e que representava o seu único meio de sobrevivência. Continuavam a fazer pão às escondidas, com o risco de serem maltratadas e perseguidas”. Faltou esta à coleção motivos para a caça às bruxas que Teresa Coutinho reuniu recentemente na peça O fim foi visto.
Em Lisboa há muita gente a fazer pão e muita gente a fazer pão bom, mas pouca gente a fazer o pão legítimo. Sair de Lisboa e comer pão bom é como ver pela primeira vez um piano a mexer-se. A diversidade do que se faz sem os tais aditivos é muito mais interessante: são os pães de milho, de trigo, de centeio e até os pães enriquecidos com ovos ou azeite que partem daqueles da memória coletiva. Na Padaria de Gimonde, por exemplo, a Elizabete Ferreira faz até os mal-ditos pães pequenos e leves que têm um lugar importante no nosso dia (nas sandes, nos pequenos-almoços, e no roubo de maminhas entre a ida à padaria e a chegada a casa).
Porque é que o movimento do pão bom em Lisboa, natural e feito sem misturas industriais, só se interessa pelo sourdough ao estilo de São Francisco? Parece provincianismo que ninguém venda, ao lado desse, um pão de Mafra daqueles leves e aromáticos que apetece comer inteiro de uma vez. O dito pão de massa mãe em Lisboa tornou-se, com algumas exceções, repetitivo e criou a ideia falaciosa de que um papo-seco só pode ser uma arma branca que nos mata pelo intestino. Este movimento Lisboeta foi essencial e refrescante, mas sinto que hoje está, além do mais, a cometer o pecado capital de cair num certo elitismo. Podia chegar a mais públicos se se interessasse mais pelos pães de que se fazem as açordas, as alheiras e que precisamos para as bifanas e os pregos. No fundo, como se faz lá fora — de Lisboa, entenda-se.
Neste Frigobar —
Deixar o Pão Falar
Pela terceira vez, as Edições do Gosto organizaram uma conferência para se debater o pão que, apesar de basilar na vida do consumidor, não tem ainda em Portugal a investigação, formação e debate que merece. Para o ano há mais.
Refeitório, de Joana Barrios
Todas as semanas, a atriz e autora de receitas Joana Barrios convida alguém ligado ao maravilhoso mundo da gastronomia para conversar durante uns 40 minutos, na Antena 1. A conversa é sempre do pessoal para o universal, que é a melhor maneira.
O Pão em Portugal, de Mouette Barboff e Paulo Chagas
A antropologa francesa Mouette Barboff especializou-se desde cedo no pão português. Neste livro reúne estilos de pão de todo o país, as suas receitas e as suas histórias e precedências. A leitura é leve mas dá um bom panorama do que é o pão neste território.
O fim foi visto, de Teresa Coutinho
Estreou no Teatro municipal Campo Alegre, no Porto, passou pelo TBA, em Lisboa e ainda vai ao cine-teatro Torres Vedras em Março. O fim foi visto é uma distopia feita por e para as mulheres — para as presseguir, aprisionar e castigar, mais uma vez. Parte da história da caça às bruxas para o futuro, para mostrar como a bruxaria é a mulher normal. Além de se ver, pode ler-se a peça numa edição da Tinta da China.
A Padaria Pão de Gimonde
No final do ano passado, Elizabete Ferreira, do Pão de Gimonde foi distinguida com o prémio World Baker of the Year pela International Union of Bakers and Confectioners e por isso esteve por toda a imprensa como a melhor padeira do mundo. No Pão de Gimonde faz o pão de trigo de Trás-os-Montes, o folar de carnes, vários pães de centeio ou outros mais criativos como o pão com figos.