Lembro-me de ver, no livro de um instagramer de comidas, um prato que seria uma boa ideia se não implicasse tráfico humano, alta pegada carbónica ou desertificação — é assim quando se lança a mão a um abacate. Os últimos dois mil anos podiam resumir-se assim: a humanidade em sucessivas tentativas de criar um pomo literalmente do pecado, não lhe bastando o outro, apenas simbólico. Escravatura, genocídios, invenção de corpos normativos e subalternização do feminino falharam rotunda e surpreendentemente. Mas a mofina social e ambiental decorrente da produção e consumo do abacate vingou. É sem dúvida um pecado mais rápido de consumir: sem o referencial secular da maçã, está em linha com o esvaziamento do simbólico dos nossos produtos culturais. Um pecado bem contemporâneo, que alegria.
O que não vale aquela textura oleosa e insípida, mediaticamente valorizada, frequentemente tão verde que deixa a boca seca e áspera? Uma — duas, no máximo — vidas humanas? Uma — duas, no mínimo — gerações humanas? Quem é alguém para ditar essas regras? O tal prato do livro do instagramer, como disse, era uma boa ideia.
Para quê poupar em elogios? Era uma excelente ideia: um doce sem açúcar. Ainda mais: versátil. Quantas mil coisas não se poderiam juntar àquilo para chegar a variações diferentes? Outro elogio, porque hoje eu não vou dar, eu vou distribuir: levava uns três minutos a estar pronta. Que maravilha de ideia. Só não posso dizer que fosse uma receita.
Falamos de um abacate e de uma manga metidos num robot de cozinha. Nada mais, uma linha. Se quisermos esticar, podemos avisar que os caroços e as peles são lixo, mas no dito livro a ideia desta mousse era engalanada: diziam-se quantidades, descreviam-se texturas e procedimentos, talvez se falasse numa reza essencial para que o puré se emulsionasse perfeitamente e na melhor forma de empratar. No conjunto, o palavreado deu uma página. Uma senhora página a que não faltava nada: tinha título, tinha uma entradinha descritiva, uma lista de ingredientes e uns bons dois parágrafos sobre o modo de preparo. Enfim, a refeição completa da paginação a que ainda se junta uma fotografia a página inteira — verdadeiro entretém de boca.
Qualquer livro de receitas com mais de 20 anos nos faz acreditar que é possível fazer muito além do necessário e até do razoável. Peixes que precisam de duas cozeduras e que ainda vão a fritar, massas de mil voltas, caldos clarificados, folhas de couve pinceladas com molhos antes de enrolarem salsichas e, por fim, salpicadas disto a daquilo — tudo salteado previamente. É o mundo do esforço e do atavio, do que se faz para agradar a alguém ou para suplantar o que se sabe fazer.
É também, tantas vezes, o reino do trabalho parvo que serve apenas para não deixar quem come empatar-se com um osso ou uma espinha ou — mais extraordinário — para oferecer a imagem da travessa de casamento. São essas receitas que nos tomam por seus criados. “Descaroce 1 kg de cerejas”. Descaroce você, se acha que dá pouco trabalho, temos vontade de responder.
Passámos de horas a olhar para caroços de cerejas para o show de duas frutas tropicais que cabe num story. O ritmo próprio do neo-liberalismo é rápido e o consumo de produtos culturais está acelerado: os meus parabéns.
Para consumir muito é melhor que se consuma rápido e, ainda que isto não preocupe nada as nossas cabecinhas enquanto escolhemos ou fazemos uma receita (e o resto), tudo em volta nos induz a ações cada vez mais curtas, que se traduzam de preferência num novo consumo (é isto o upselling ou o cross-selling?) e não em mais um pouco de ócio. Do Youtube para o Tiktok, passámos de vídeos de horas para outros de segundos. Dos Sopranos para Sex Education, passámos de episódios de uma hora com quatro nomes de personagens diferentes por segundo para 20 minutos em que está tudo arrumadinho, confusões é que não.
Não sei sacar de um Jean-François Lyotard e das pós-modernidades, para isso a internet tem a Dona Rita, mas ligando este ritmo ao esvaziamento de significado do que ingerimos — física e metaforicamente — talvez a pataquada inicial não seja uma analogia tão descabida: o pecado simbólico de uma maçã está tão longe que não temos vagar para lá ir, reconhecer e construir em cima do seu referencial. Arranjámos uma fruta que carrega de facto o pecado — o crime, no caso. A maçã, que foi a tradução para tantos mitos e a mais adequada que o ocidente arranjou para o texto bíblico, já nem é o sinónimo de saúde. Não se mete em tostas nem em smoothies e raramente é convidada da restauração que se auto-proclama saudável. Quem fala hoje de maçãs? Só mesmo Raúl Rodrigues, que está a criar uma biblioteca de macieiras no Minho.
Trocar a “maçã por dia dá uma vida sadia" por purés de abacate é deixarmos de pensar e de nos confrontar com o pecado para passar a pô-lo na boca — a escondê-lo e a fagocitá-lo. A ideia de mousse de abacate e manga é, na forma e no conteúdo, um tratado sobre rapidez de consumo — de cultura, de tempo, de comida. E, não tendo eu o cajado que bate no chão para parar o tsunami e abrir as águas, sugiro só que não se desmanchem e imprimam árvores por causa disso. Faça-se antes um Tiktok.
Neste Frigobar —
Abacate
Guacamole é bom, mas se vier do abacateiro do quintal. Assim a pessoa evita de ficar a pensar no surgimento de cartéis, na América do sul, com práticas semelhantes às do tráfico de droga, ou na pegada carbónica e hídrica do abacate. Mesmo quando a pessoa está descansada com a proveniência nacional — porque “compro o que é nosso” e “a gente só trabalha com o quilómetro zero” — sobe-lhe ao nariz o cheiro a desertificação e desigualdade no acesso à água. Nervos em franja.
Rita Von Hunty
Há dias, li-a descrita como “namoradinha comunista do Brasil”. O conceito é bem mais interessante do que o de “namoradinha de Portugal” e o conteúdo tem matéria para horas de Youtube e estudos de cultura. No seu canal, Rita Von Hunty, a drag do professor Guilherme Terreri, explora tópicos variados da produção cultural e do consumo contemporâneos e indica fontes, autores e outros materiais para que cada um se forme à la carte.
@rita_von_hunty ⧫ Rita no Youtube
Raúl Rodrigues
É professor da Escola Superior Agrária de Ponte de Lima e é lá que está a criar um pomar com mais de 60 variedades de maçã, todas de origem minhota. A maçã do Minho é rica em tudo. E não falo de nutricionismos, mas de todo o lastro cultural e simbólico que criou ao longo de gerações. Os nomes populares de cada uma das variedades denunciam-no: a porta-da-loja, por exemplo, era aquela que se guardava à entrada da loja (o tradicional armazém e despensa de cada casa) e que se oferecia a quem nos visitava brevemente. Com a standartização da maçã para venda, estas variedades particulares foram sendo abandonadas, e o trabalho de catalogação de Raúl Rodrigues é arqueologia.