Não é um pão de leite, não é um biju
Procura-se o brasileiro. Se tem informações sobre o seu padeiro, contacte-me.
Passei os últimos 20 anos a resolver a circunstância de não ser de lado nenhum. O bilhete de identidade dizia-me uma naturalidade misteriosa, dada pela burocracia: Loures. Nasci na Estrela mas o registo civil quis que ficasse claro o concelho onde moravam os meus pais. Não me lembro de viver lá. No início dos anos 2000, Odivelas estava a tornar-se uma freguesia mastodontica e conquistou a independência. Sem mudar de casa, mudámos de concelho e eu sem uma terra onde ir passar a Páscoa.
O dilema era administrativo e o problema tornou-se oficial quando aprendi, na escola, que vivia nos dormitórios. Odivelas era para ir dormir e quando se está a dormir, está-se em outro lugar. Não valia a pena reclamar do passado, só havia à minha frente o caminho da reconciliação com o não-lugar ou esperar dramaticamente a idade para uma rebelião. Enquanto isso, ser uma criança desiludida que passeia no subúrbio como num cenário de guerra.
A recém-cidade tinha muita gente. Todos certamente a fazer tempo para ir dormir e cumprir o desígnio do sítio. Havia, no centro de Odivelas, o Oceano, que só deixou de ser impressionante quando abriu o Colombo — concorrência desleal. Sabemos hoje que aquela falta de luz natural do Oceano não ajuda a vender. Explica-se assim que a única mole estivesse na cave, num salão com máquinas de jogos, simuladores e carros em tamanho real que se conduziam parados. Aos cinco anos, a clientela deste sítio era a minha definição de drogados.
De frente para a entrada do centro, subía uma espécie de Rua Direita — onde, como sabem os colegas jograis, é proibido lançar águas sujas, ordenou dr. Gonçalo Vaz em nome d’El Rey. A ideia era ficar tudo agradável para a Charles, a sapataria de todas as mães, a Singer, muito tecnológica com letras a vermelhos sem serifas, e o grande grupo de panificação Espiga Dourada.
Nas três ou quatro padarias havia de tudo, de pão a gelados. Um casino da farinha aditivada, onde se entrava com um cartão que, em vez de se esvaziar ao longo da noite, ia engordando em 15 minutos. Pagava-se à saída, numa senhora com ar de portagem.
Embora tenha aí provado o pão tigre a ou vieira, o meu preferido era o brasileiro — nome que nunca questionei e que, sei hoje, foi o melhor que fiz. “Se eu forçar a memória mais e mais a fundo, até onde ela toca a imaginação”, como escreve o Chico Buarque, o brasileiro era um pãozinho ligeiramente doce mas branco, só vagamente húmido, como um falso testemunho de que está mal cozido. Eram duas bolinhas coladas uma à outra e ia muito bem com manteiga ou, em situações dramáticas, com a loção vegetal a que chamávamos margarina.
Há pouco mais de um ano, eu e o meu namorado (chamemos-lhe Tiago para que não se defina pela nossa relação; dá-se a coincidência de ser esse o seu nome) percebemos, num momento de rara magia, que ambos sabíamos de que falamos quando falamos de um brasileiro. Procurávamos um pãozinho bom mas corriqueiro para valorizar uma cabeça de xara feita com todo o preceito em nossa casa, para um evento da Fábrica da Musa, em Lisboa. A promessa de um papo-seco denso e de dentada adocicada parecia, a dois filhos dos subúrbios de Lisboa, ideal para surpreender gente culta que só conhece capitais.
Metemo-nos no carro, atravessámos a fronteira do Campo Grande. Entrámos na mais emblemática Espiga, a primeira e com ar de salão de casamentos. O ambiente estava intocado, mas era quase meio-dia e o pão tinha praticamente desaparecido. Precisávamos de perguntar por eles para poder dizer que tentámos de tudo. A minha pergunta — “tem brasileiros?” — foi recebida com sotaque. A menina atrás do balcão conhecia bem o Brasil e percebi na sua cara um ligeiro despeito traçado com descrédito — perguntou à colega se ainda havia pão de queijo.
Caiu-me um bocado em cima o peso do dormitório e do seu linguajar com contornos bastante descabidos e até errados. Naquele ápice ficou óbvio que a Espiga Dourada tinha percebido, como o avançar do século, o absurdo de chamar brasileiro a um pão sem referência ao Brasil, num sítio onde tantos brasileiros legítimos poderiam reclamar legitimamente. Eu e o Tiago descrevemos o pão. Branco, doce, mas não muito doce, duas bolinhas casadas, às vezes com uns salpicos de farinha em cima, enfarinhado por baixo sem dúvida; não esquecer: branco mas adocicado. Quando estávamos já suados de esforço, eram três pessoas a ouvir e, nas suas caras, nem sequer uma equação matemática a ser resolvida. Víamos só o grande diagnóstico da nossa loucura: afinal, cada um trabalhava ali há mais tempo do que o outro e nunca lhes passou tal pão pelas mãos.
Foi o fim da rara magia. Não privei com o grupo do ido Allen Halloween, agora Allen Pires Sanhá, e a minha vivência do subúrbio não teve drogas nem assaltos. Tive a cabeça descansada o suficiente para a ocupar de pão e, enquanto prensávamos as carnes da cabeça do porco, por um par de horas sublimes, achei que Odivelas era um lugar, um sítio a que, com jeito, podia chamar terra, com os seus brasileiros muito típicos e tradicionais — quem sabe já com declinações das que se fazem para inglês ver: o brasileiro com nutella, o brasileiro com queijo da Serra.
Algures no intervalo em que me afastei do subúrbio, fizeram tábua rasa de tudo. Esqueceram os brasileiros, já nenhuma padaria de auto-proclamado fabrico próprio tem os melhorantes químicos ideais, nada ficou para semente. Para o fumeiro português ou para o vinho de maçã do Minho, há muito quem investigue e assente o que alguns só sabem de ouvido e boca, mas com a receita dos pózinhos de fábrica ninguém se preocupa. Se penso nos brasileiros, ainda sinto na boca o sabor, mas é inútil, não tenho cursos em química.
Se vemos jovens desnorteados, na rua a beber, e a preferir o Uber ao táxi, é preciso ir à origem do problema: estamos todos privados da cultura e infância efémeras. Para onde vamos se não podemos sequer lembrar-nos da última vez que comemos um brasileiro? Não há razões para ter esperança que regressem e podemos até em dúvida que tenham — tenhamos — existido. Voltamos a caminhar no cenário de guerra.
A sentença de dormitório lança a má-língua de que em Odivelas não se passa nada. Esta segunda-feira, o Público trazia uma reportagem da Joana Gorjão Henriques com o título Refeições halal chegam a escolas de Odivelas: “É uma questão de justiça ter as crianças à mesma mesa”. São refeições para a população muçulmana e que garantem que estes miúdos cumprem a sua liberdade religiosa juntamente com todos os outros. Permitam-me alertar-vos, jovens garotos de Odivelas: guardem todos os registos. Em 20 anos vão tentar convencer-vos de que nada disto aconteceu. Suponho que seja tudo um truque do mercado imobiliário para fazer o centro de Lisboa parecer melhor do que realmente é.
Neste Frigobar —
Toponímia de Lisboa
Lugar de profunda procrastinação: as ruas de Lisboa. Tal como o blogue, escrito pelo Núcleo de Toponímia do Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa. É perfeitamente natural, perante uma página sobre todas as ruas de Lisboa (com fotos!!!), que os serviços da câmara possam, ocasionalmente, ser uma desgraça.
Espiga Dourada
Hoje são duas, mas o grupo já contou com o título El Rey D. Dinis. É um restaurante de prato do dia que não envergonha e uma padaria que, como fica claro no seu site de design original, fabrica de tudo menos brasileiros. Convido também a visitar, no site, a secção Bolos Adultos. Temi impressão de pornografia em massapão.
@espigasdouradas ⧫ Rua José Gomes Monteiro, 3 A, Odivelas.
Anos de Chumbo, Chico Buarque (2021)
A chegar ao último conto apercebi-me que este é o primeiro livro de contos de Chico Buarque. Abri a boca espantada e não cheguei a dizer “seu cabrão” como a minha cabeça mandava. A beleza e a dureza do género estão neste livrinho, não tenho dúvidas, tal como estão nos de Lygia Fagundes Telles ou de Nelson Rodrigues.
Allen Halloween
Odivelas não é só a classe média branca dos condomínios, do Oceano e das padarias. Halloween desapareceu porque Allen se dedicou agora a uma vida calma e a jeová, mas deixou escritos álbuns crus e doridos sobre bairros como a Codivel ou o Barruncho.
Tb adorava esses pães! No sítio onde encontrava - pastelaria Sena na Av Joao Crisóstomo (ainda existe) julgo que se chamavam “enfarinhados”. Pode ser que ainda fabriquem 😉