Dinheiro é uma coisa boa. Corrijo, nem é boa — é uma coisa. No entanto, e não conhecendo gráficos sobre a quantidade que transforma o bom senso e liberta a estultícia, não tenho dúvidas de que existe uma porção máxima certa de dinheiro que se pode ter.
A única vez que estive no The Sea The Sea, em Londres, foi também a única que estive em Chelsea. Tivemos a felicidade de nos sentar ao balcão, com o Leandro Carreira a preparar, mesmo à nossa frente, o melhor peixe que se pode comer naquela cidade. Isso era definição de luxo antes de ele nos contar a seguinte história sobre uma latinha de caviar pousada na banca do peixe, a barra do restaurante.
Um jovem russo de óculos de sol tinha-se sentado ali dias antes. Eram as horas do almoço ou as primeiras do lanche. Apontou para a lata pousada no gelo e perguntou se não havia melhor. Soa, e bem, a insulto. Aquele caviar já era muito bom e, depois de uma troca de argumentos, o chef percebeu duas coisas: por ‘melhor’, ele entendia ‘mais caro’ e, com ‘óculos de sol’, ele dizia ‘ressacado’.
Não me lembro do preço da lata — era um desses números grandes que não dão para visualizar. Culpa do câmbio, certamente. A história acaba com o Leandro Carreira a trazer-lhe um caviar exponencialmente mais caro, o último da sua lista por ordem ascendente de valor e que guardava longe do à mão de semear do balcão. Assim tratou o jovem — que, justiça seja feita, mostrou ser conhecedor do produto — do período conturbado por que passava.
A charada da situação é que nem o caviar é para a ressaca, nem a ressaca eleva o caviar.
Não é frito, nem vinha com fritos. Testemunhas oculares contam que a lata em questão foi consumida às pazadas, das costas da mão — como se faz. Não havia sequer a abundância de um hidrato, só um qualquer destilado para empurrar. Por outro lado, o apuramento do paladar que faz sentir as nuances aos mais caros condimentos não é descrito pela ciência como um efeito da intoxicação pelo álcool. Não que a ressaca mande a língua de uma pessoa para a sarjeta, mas certamente não a deixa pronta para os testes de superprovador.
E isto leva-me a concluir que a única razão para se comer caviar num dia de ressaca é: porque se pode.
O meu conselho para ressacas com dinheiro
A grande extravagância da minha ressaca é um ben-u-ron. Em geral o meu corpo começa por pedir citrinos, mas sou capaz de atalhar caminho com o comprimido, se o dia for especial. Não são todos os farmacêuticos que concordam em vender as caixas de ben-u-ron 1g apenas com a garantia de que sabemos tomá-los. Não estou confortável com esbanjar um desses comprimidos que tanta expressão dramática me exigiram. Se o meu estado se deve a vinho martelado, então recuso-me a empenhar verdadeira medicina.
Gente com dinheiro não terá o problema de sentir que a cura não honra a origem do problema e o álcool que leva uma carteira endinheirada à desgraça merece mais do que paracetamol. Ignorem-se os esquemas pelintras e proceda-se à verdade da cura: fritar, fritar, envolver. É a ordem de trabalhos com que a Ana Moura faz o seu prato de carabineiro no Lamelas, em Porto Covo.
O prato é uma recriação de um outro, de Isidora Beotas, com quem trabalhou em Espanha, e faz pouco dos pé rapado que têm, em dias de vulnerabilidade, ânsias de comer pizza, bacon frito ou chicken and waffles. São batatas fritas, um ovo estrelado e um carabineiro cozinhado na medida certa — a jóia que assegura que o lesado pelo álcool ainda está bem na vida.
Esta não é altura para esfregar dinheiro na cara de ninguém (se não na nossa. Digo: vossa), mas o prato pode sair tão caro como o melhor caviar. Pode não chegar-se à Costa Alentejana no tempo útil da ressaca, o que será facilmente retardado se continuarem a beber.
O meu conceito de ressacas sem dinheiro
No início de Dezembro passado, um grupo de atores fez quatro peças de Tchekhov de seguida. Começavam às 19h, acabavam às 6h, pelo meio tinham 40 minutos de intervalo. Não tenho interesse em fazer as contas às horas que isto dá, iria perder um bom bocado nisso, mas a Rita Cabaço diz que era quando faltavam umas duas horas para a encenação acabar que aquela mãe de todas as bebedeiras começava a ficar interessante.
No Teatra conta que, por essa altura, o cansaço vai em tal ordem que já não se está a pensar em nada, o corpo mexe-se sozinho, ousa e experimenta coisas que nunca tinha feito. Para a Rita, quatro ou cinco personagens dos Russos ao mesmo tempo, para mim uma ressaca como todas. É, tal e qual, o meu momento dos grandes empreendimentos, de passar óleo de linhaça nas madeiras ou de lavar o fogão que, em dias de saúde, me pareceria sempre higienizado pela força das altas temperaturas.
Como diz a Rita, “começas a não ter medo de arriscar, já estás por tudo”. Se não nos mantivermos vigilantes, damos por nós a começar uma cabeça de xara ou um manjar branco e a viver a desilusão de nenhuma destas receitas ser indicada para curar ressacas. Quando estão prontas, já se está a restituir ao bar de casa todos os créditos levantados e, inocentemente, a programar um novo serão. Tarde demais.
Num desses dias em que o corpo só disse go, senti-me segura de que seria bom tentar replicar um prato da Mercearia Gadanha. A Michele Marques chama-lhe A Revolta das Batatas: são batatas palha, ovo a baixa temperatura, um enchido cheio de toucinho brilhante e um creme no fundo do prato que ajuda a envolver tudo, a dar cremosidade e languidez. Ter-me-ia curado uma ressaca a primeira vez que o provei, se lhe tivesse dado a oportunidade.
Em casa, o prato é ideal para quando “o corpo está mais presente do que nunca”, diria a Rita Cabaço. Cortar batata numa mandolina com espigões salientes, fritá-la acima de uma centena de graus e repetir o processo durante uma boa meia hora, em pequenas porções, é trabalho que ganha uma aparência de higiene pessoal e aquele molho abençoado e secreto torna-se intuitivo — era certamente uma abóbora metida no forno e passada com uma varinha mágica, acredita o corpo atrevido.
Na altura em que cozeriamos um ovo com um daqueles canudos que controlam a temperatura, já a nossa matéria está cheia de saber que é capaz de muita coisa e, felizmente, começa a regressar à normalidade. Está na altura, portanto, de preferir fritar um ovo.
O tempo que esta combinação demora a desaparecer é inversamente proporcional ao que levou a aparecer. Corpo e alma estão ainda mazelados, uma sombra em roupão a fazer passar-se por uma das melhores chefs nacionais, mas com a dignidade de quem rejeitaria, nestas condições, uma latinha de caviar. E não por uma questão de dinheiro.
Neste Frigobar —
The Sea The Sea
Este seafoodbar é bebedeiras de maresia, embriaguez de peixes delicados, borracheiras de colagénio salgado. Tudo é unido com o toque criativo do Leandro Carreira, chef executivo, num ambiente tão descontraído que nos faz acreditar que é esta a nossa vida: virar peixe de autor e bons vinhos num dos bairros mais caros de Londres.
@Theseathesea_⧫ 174 Pavilion Rd, London SW1X 0AW.
Lamelas
O Lamelas era um homem conhecido e respeitado em Porto Covo. Era o avô da Ana Moura, que decidiu desafiar a lei de que um apelido precisa de uma descendência masculina para não se perder. Ela é a Lamelas desde 2021. É um dos grandes restaurantes para começar umas férias, acabar umas férias, ir todos os dias durante as férias, ir quando se queria estar de férias — pelo excelente produto, cozinha sem truques e serviço de sala que nos convence de que temos uma casa no Alentejo.
@lamelas.restaurante ⧫ Rua Cândido da Silva, 55A, Porto Covo.
Teatra, Mariana Oliveira
O podcast do Teatro Nacional D. Maria II é conduzido pela jornalista Mariana Oliveira. De Tiago Rodrigues a Filipe La Féria: todo o alfabeto do cenário teatral português se ouve aqui.
Mercearia Gadanha
O enchido brilhante não é a única fortaleza da casa de Michele Marques. Não há medo dos fritos, dos molhos intensos, das sobremesas a saber a doce. E nada disso ofusca o bom produto alentejano.
@gadanhamercearia ⧫ Largo Dragões de Olivença, 84 A, Estremoz.