No início de 2021 fiquei vidrada na pessoa de Fran Lebowitz. Quando vi Pretend It’s a City, recuperei a sensação de ver os Anjos, aos sete anos, pela primeira vez: vamos certamente casar. Se não, vamos pelo menos ser grandes amigas e, em algum momento, por necessidade ou por vontade, viver juntas.
Aprendi com isto que, a caminho dos 30, esses projetos duram malogradamente muito menos tempo. Ainda assim, depois de sorver todos os episódios desta sua série, fui à procura dos livros, das conferências, dos talk shows em que entrou. O fascínio não diminuiu, mas uma pergunta ficou, ao contrário do que poderia esperar, mais irretorquível: o que é uma Fran Lebowitz?
Depois de se ter mudado para o subúrbio para Nova Iorque, Fran Lebowitz teve as mais variadas profissões para ganhar dinheiro — foi taxista, vendeu bugigangas na rua —, andou em festas malucas, dormiu até tarde, escreveu em revistas; em 1978, escreveu o primeiro livro; escreveu o segundo livro em 1981. Escreveu o terceiro, para crianças, que não precisava de ter escrito, porque já ganhava a vida em conferências pelos Estados Unidos. Nunca mais escreveu nenhum. As suas palestras consistem ainda hoje em ouvir perguntas sobre qualquer assunto da vida e responder-lhes. Milhares de pessoas pagam para fazer uma pergunta a Fran Lebowitz e receber uma resposta desagradável e de que não precisavam.
Podemos assumir que conhecemos Fran Lebowitz se tudo o que ela faz é dizer-nos o que pensa. Mas o que é ela? Podemos ser criativos e dizer que é uma escritora — mas não escreveu (ou publicou) nada nos últimos 20 anos. A resposta a “o que é?” dilui-se à medida que se responde a “quem é?”. Com Fran Lebowitz, onde a primeira restringe, a segunda alarga e até fingiria que é isso que me fascina, se não fosse demasiado óbvio que passar uma vida a viver-se de dois livros escritos antes dos 30 foi o suficiente para me inscrever na sua igreja.
Agora mesmo, uma mulher no café onde escrevo põe o problema rigorosamente, evocando o caso de uma sandes de um snack-bar na Moita: “ou é bifana ou é queijo de azeitão, as duas é que não pode ser”. Estou em condições de dizer que não são essas as minhas conclusões. Há pelos vistos uma maneira de ser uma coisa e outra — mais do que ser uma coisa apesar da outra. O problema pode ser mais complexo do que estamos preparados para dissecar, sobretudo se tivermos sido expostos à ideia de uma bifana com queijo de azeitão. Arruina qualquer trabalho intelectual, de acordo.
Na situação extraordinária de se conseguir ser com sucesso muita coisa, fica-se sem cartão de visita. Pode ser um problema. Dias depois de ganhar a distinção de Melhor Loja Gastronómica 2021 nos Prémios Mesa Marcada, encontrei Rita Santos no mercado de produtores que a sua “loja gastronómica” organiza no Largo de São Paulo, em Lisboa, todos os sábados de manhã. Estava um bocado sem saber o que dizer quando lhe dei os parabéns. Agora a Comida Independente era dita “loja gastronómica”, mas também é um bar de vinhos pouco intervencionados. Além disto, tem a Marcella Ghirelli a fazer mais com uma placa de indução do que muitos com 10 metros quadrados de cozinha bem equipada — o seu pastrami é um dos melhores da cidade e o hambúrguer garanhão italiano é suculento e praticamente pornográfico.
Não sendo o bastante, a Comida Independente é uma curadora de agricultores e outros produtores. Junta-os todos os sábados num mercado de rua que começou durante a pandemia e põe em contacto direto os clientes e quem vive da terra com intensidade — naturalmente em regime extensivo.
O interesse da Rita Santos pelo seu negócio vai muito além da transação. Com a equipa da Comida, visita os produtores, vai conhecer o terreno, como trabalham, o que põem ou preferem não pôr na terra, o que é difícil no seu trabalho, as razões para estarem ali. E quer que toda a gente conheça também: grava tudo com uns telemóveis, põe no instagram e baralha as definições de Francisco Rodrigues dos Santos sobre “gestores do território”.
É fácil perceber por que a Rita estava emperrada na descrição do seu negócio. Disse-me às tantas, “e somos mais coisas”. Felizmente estava a conversar com este oráculo, que lhe deu uma prática solução para o seu cisma: “ainda bem”.
Quando conheci a Rita, a Comida Independente estava a uns dias de abrir. Na altura disse-me que não vendia nada biológico por ser biológico, nem iria ter na zona da garrafeira apenas vinhos naturais. O importante era que os produtos fossem bons, bem feitos, respeitadores no território — e das pessoas — de onde vêm: “grandes produtos de pequenos produtores”. Eu escrevi uma peça para a Time Out Lisboa que ficou com o título “Mercearia Indie”. Na altura achava que era aquilo que a Comida Independente ia ser — e a Rita também. Enganei-me, mais eu do que ela. Mas compreendam: eu tinha de dar um título. Sem título não há reportagem, nem entrevista, nenhum artigo. Temos sempre de dar um título.
Neste Frigobar —
Pretend It’s a City, de Martin Scorsese
A cada um dos sete episódios, Fran Lebowitz fala sobre Times Square, livros, cigarros, crianças, festas em Nova Iorque. Eis uma coisa que ela não disse nesta série: “I despise the term “foodie.” I mean, how is this a personality? “I like food”— how original. Do you also like air? Water? Shelter?”. É uma das suas reviews na Amazon — ao livro Ultimate Foodie Cookbook.
Comida Independente
A Comida Independente nasceu em 2017 e trouxe a resiliência para a vida de Rita Santos muito antes da palavra se tornar um must have no nosso dicionário pandémico. Uma loja, uma escola, um mercado e um tratado. É qualquer coisa por aí.
@comida_independente ⧫ Rua Cais do Tojo 28, Santos, Lisboa.