Pelo menos uma vez por semana o meu telemóvel diz-me que tenho pouco espaço na memória. Na dele, não na minha. Com a arrogância de uma máquina manda-me apagar ficheiros. É portanto com esta frequência que me confronto com a gravação da única entrevista que fiz a Maria de Lourdes Modesto. Uma entrevista em que não lhe perguntei nada de importante. Generosa como sempre, ela disse-me mais do que pedi.
Esta gravação tem a mágica duração de 49 minutos e 49 segundos e podem os que sabem fazer essas conversões imaginar o espaço que eu não ganhava ao apagá-la. Ainda assim, parece-me sempre um pouco desrespeitoso deitá-la ao lixo, apesar desta conversa não ter grandes perguntas sobre a vida e a carreira de Maria de Lourdes Modesto, sobre a gastronomia portuguesa ou sobre a vida. A razão que me levou a casa deste ícone, a quem tinha tanto para perguntar, foi saber o que tinha no frigorífico.
Era 2017, eu escrevia sobre comida na Time Out Lisboa e tinha especial gozo em fazer uma rubrica semanal que consistia na consulta de frigoríficos. Chegava com um colega fotojornalista — nesse dia, o Manuel Manso — abria os frizeres (com o devido respeito) que julgava terem potencial e, em vez do quem, onde, quando e porquê tradicionais do jornalismo, perguntava “onde é que se compra”, “como é que cozinha isto” e “o que é que há sempre cá e casa?” Passava-se nisto um bom bocado e era um pretexto para conhecer pessoas com quem queria falar. Foi por isso que, com todas as dificuldades de contactar uma senhora de 87 anos que já não ouvia bem, insisti em combinar com Maria de Lourdes Modesto uma ida à sua casa em São João do Estoril.
Ia com as coisas todas da Cozinha Tradicional Portuguesa na cabeça e nos ombros, a pesar. A expectativa de encontrar essa bíblia em forma de frigorífico era, parece-me ainda hoje, não só legítima como a de qualquer um. Afinal, é apelidada madrinha, guardiã, diva, mestre da gastronomia portuguesa. Sem mais, enumero o que encontrei: salmão fumado, bacon aos cubinhos, todos os tipos de queijos para gratinar (sobre o parmigiano reggiano, disse, “já não sei comer massa sem um bocadinho de queijo ralado”), ketchup, molhos da IKEA, peito de frango congelado, entremeada congelada, gelados.
O frigorífico era farto e a Maria de Lourdes Modesto tinha uma simpatia maternal. Dizia frases com muita graça, ora pelas expressões em desuso ora pelas ideias inesperadas. “Se me puserem uma vendedeira à frente… as coisas que eu compro… porque gosto! Mas ando sempre na dieta. Na hora de comer penso nos quilos que tenho de perder. Mas não sou dos lights…” Sobre a farinheira disse-me que era um enchido “muito da sua simpatia” e que comia maçarocas de milho depois de uns minutos no microondas “ao dente, como os miúdos”.
Deu-me uma receita “muito simpática”: uma bola de gelado de limão com espumante Freixenet; explicou-me como fazia massa de pimentão caseira e frisou várias vezes que guarda as oleaginosas no frigorífico “para não rançarem” — facto que me fascinou ao ponto de eu própria adotar o método. Também me deu os rácios para o seu molho de óleo, vinagre e mostarda — tinha-o sempre pronto no frio, para regar saladas.
A dada altura, imaginei-a a anotar receitas da televisão, como fazia a minha mãe antes da internet, enquanto via a Praça da Alegria. “No TLC, vejo um italiano que a habilidade dele é fazer bolos extraordinários. É preciso camions para levar os bolos dele. É casado com uma italiana e de vez em quando faz uns cozinhados. Fez um puré de batata com queijo Philadelphia que fica uma coisa absolutamente maravilhosa. A estrela do meu almoço foi o puré de batata do homem.”
A minha cabeça estava num misto de devoção, excitação, carinho e qualquer coisa fora do sítio que atingiu o seu pináculo no frasco de mostarda de endro da IKEA e que estava agora a tentar ganhar sentido. Foi nesta altura que me explicou como fazia a sua salada de endívias. Cortava-as finas e envolvia no tal molho. “Está a ver, eu estou sozinha, estar a fazer complicações…”. Não me pareceu um facto de importância e não anotei. Ela é que notou: “Eu não me importo que diga que é para desenrascar. Eu não sou a santa da cozinha, eles é que me chamam, mas eu não sou.”
A entrevista não era de vida, eu estava ali por carolice, mas felizmente ela teve a generosidade de me revelar tudo sobre a sua pessoa. A mesma mulher que guardava a cozinha tradicional portuguesa e continuava a pesquisa e escrever sobre ela era, simultaneamente, praticante de atalhos e assídua nos ultraprocessados que hoje maldizemos e que nas últimas décadas alimentaram as famílias da classe média por praticidade, pela novidade ou simplesmente por nos dizerem tanto à língua. Não são traços antagónicos, são traços humanos e, possivelmente, comuns às refeições populares das décadas que se seguiram ao seu mais famoso livro.
Há qualquer coisa de universal na Maria de Lourdes Modesto. O seu mais citado livro, a Cozinha Tradicional Portuguesa, além de fixar o património gastronómico popular português, é uma ideia simplesmente generosa: uma coletânea de receitas que recebeu de espectadores de todo o país. O valor deste trabalho e o que não se perdeu por causa dele é praticamente inestimável. Como me mostrou no seu frigorífico, o seu lugar de gastrónoma consensual tem a contradição no peito e a heresia no estômago; não foi conquistado com as “farófias à minha maneira”, com o “meu leite de creme” ou o “arroz de miúdos à minha moda”, mas com um sabor e um saber coletivos que nos vão sempre lembrar alguém — a mãe, uma avó ou um tio. Uma espécie de média entre todos a que demos uma cara, um nome e, mesmo nas receitas salgadas, uma grande doçura.
É por isto que, uma vez por semana, prefiro apagar fotos de viagens do que uma gravação de 49 minutos e 49 segundos com a receita de puré de batata do Cake Boss.
Neste Frigobar —
Pensar em Maria de Lourdes Modesto lembra-me sempre de duas pessoas que admiro e, talvez, os dois jornalistas que melhor escreveram sobre ela nos últimos anos. Por estas razões arranjei maneira de ter um deles como amigo e o outro como namorado.
A diva e a crítica. Maria de Lourdes Modesto, a mulher a quem devemos a original cozinha portuguesa
Observador, 2020
Em junho de 2020, o Mauro Gonçalves ligou-me para me contar que o Miguel Esteves Cardoso tinha pegado no telefone para lhe dizer que este perfil jornalístico estava primoroso. Não imagino o MEC a pegar muitas vezes no telefone e isso há de ser o suficiente para ler esta peça, hoje ainda mais bonita do que antes. É uma espécie de Frank Sinatra Has a Cold português: um perfil escrito sem falar com o perfilado e que ainda assim conseguiu a proeza de fazer o seu protagonista presente. Maria de Lourdes Modesto estava já bastante frágil em 2020 e este texto tornou-se uma excelente prova da sua influência e do impacto do seu trabalho.
“Cozinhados era uma coisa que eu não achava graça nenhuma”
Observador, 2016
Nesta entrevista de vida ao Tiago Pais, Maria de Lourdes Modesto conta que decidiu avançar com A Cozinha Tradicional Portuguesa porque achava que tinha um tumor incurável. Como o Tiago é um curador de boas histórias, esta entrevista é como tomar chá com a Maria de Lourdes Modesto, com direito a fotografias antigas. Imaginem-se numa moradia com um jardim de estrelícias à porta e muita bricolage mimosa no interior.
Cozinha Tradicional Portuguesa, de Maria de Lourdes Modesto
Foi lançado no início dos anos 1980 e foi fundador ao registar as diversas mesas do país naquele momento, de norte a sul e de todas as ilhas. Continua a reeditar-se até hoje (há igualmente a tradução inglesa) e, 40 anos depois, inspira novos restaurantes, cozinheiros e famílias. É impossível apagar o nome de Maria de Lourdes Modesto.