Não é pequena a vontade humana de sempre melhorar a sua vida. É indignante. Esburacam-se pilares identitários, cria-se um vazio de costumes (dos bons, naturalmente), e recheia-se tudo com chocolate. São assim as consecutivas declinações do bolo rei, cheias de pretensa modernidade e libertação, que mazelam qualquer bom e feliz conservador. É isto o exército woke?
Tenho compaixão por quem vive a evidência de que o imortal bolo do advento não os representa. Imagino uma coceira de alma semelhante à de saber que a referência do daytime é um normalizador de neo-nazis e gay-homofóbico. Mas tal como com o Manuel Luís, não resolve privá-lo de fruta cristalizada.
A corrente woke contra do bolo rei ocupou-se de criar aberrações sem fruta, outras escangalhadas, achocolatadas, com nomes de aristocracia que não era chamada para o caso. É simplesmente ofensivo que tirem ao bolo rei as frutas cristalizadas e lhe ponham um nome feminino. Em que mundo vivemos se, na segunda década do novo milénio, ainda se olha para um pãozinho doce criado para satisfazer os mais infantis apetites e se assume, “olha, uma mulher”?
Na base da censura estão conceções totalmente erradas sobre as frutas. Reajem como se lhes oferecessem um prato de casca de laranja à fatia. Não somos bárbaros. As frutas inteiras do cimo são para ver. Para comer há por aí muita coisa, mas para se ficar encadeado com um verde garrafa brilhante, na dúvida se é figo pingo de mel ou loiça Bordallo Pinheiro — para isso já não há variedade.
Uns chamam-lhes desperdício, outros hedonistas donos de terras chamam-lhe admiração pelo belo. Razão suficiente para impedirem gente trabalhadora de apanhar a fruta caída — como acontece no filme da Torre Bela. Parecia estar a apodrecer, mas era tudo para cristalizar, para pôr em cima de bolos rei, cumprir os ritos de vegetar na borda do prato, ir para o lixo. Amém. Um tio descontente com o regime podia envergonhar o agregado e drogar-se com glicose, comendo, de estômago vazio, uma pêra transmutada em xarope — um caso isolado. Famílias. Cada um com a sua.
Já sobre o belíssimo caleidoscópio distribuído pela massa: é tempero. Igual a anchovas no fundo do molho de tomate. Não é suposto sequer saber-se distinguir a abóbora da maçã cristalizadas (abrimos uma exceção para a casca de laranja), são todas carregamentos de açúcar, de textura gumosa e corantes alimentar desnecessários.
Uma boa forma de fazer-se uma introdução suave a esta ideia de fruta cristalizada é provar o bolo de natal goês, cake de natal. Orlando Rodrigues coze-o todos os anos no Zuari, o restaurante onde, com toda a família, continua a história que os levou de Goa a Moçambique e, finalmente, a Lisboa. O cake é um bolo inglês bastante engalanado de especiarias, melaços e licores — estes últimos todos feitos, Orlando garante, por ele mesmo. O festival da massa é tanto que a fruta cristalizada se nota apenas na medida certa, como mais um acento de doce e de textura. Se vos deixa mais felizes: nem se nota nada, sobretudo à terceira garfada, quando o álcool no sangue já não nos permite conduzir nos limites da lei.
Eu gosto de novas ideias. A negação das sucessivas más definições do que pode ser um bolo rei não deve ser confundida com tradicionalismo cego e incapacidade de encarar o futuro. Uma boa prova disso está na Rua do Loreto, em Lisboa, onde a Pastelaria Camões vende, ao quilo, fatias altas e compridas de bolo rei. São entregues já em fim de vida e alegações de que não são frescas serão inúteis — se ficou com essa ideia é porque está a usá-las da maneira errada. O propósito é encher uma torradeira com uma só fatia e barrá-la, depois, com manteiga. Se fazer bolo rei de forma e vendê-lo fatiado não é visão de futuro e uma resposta acertada do mercado aos problemas do consumidor, desisto já à primeira missiva.
Estou certa de que toda esta novel ideologia tem origens em interesses capitalistas — provavelmente de indústrias dos frutos secos ou mesmo dos grandes nomes do chocolate, que não podem ver ninguém a divertir-se sem vir lançar a suspeita de que falta manteiga de cacau. Investigue-se. De preferência a tempo do dia de reis. Enquanto isso, a maioria que admira o tradicional bolo rei é silenciosa — e nas nossas caras vão encontrar sempre a calma de quem vive com a razão. Bom 2022.
Neste Frigobar —
Zuari
Aqueles que ainda comem carne podem começar por pedir o sarapatel e depois sim abrir o menu.
@restaurantezuari ⧫ Rua de São João da Mata, 41, Santos, Lisboa.
Pastelaria Camões
A drive para fazer acontecer o Bolo Rei Loaf, uma inovação dentro do seu business model, merece um shout out. O customer development feito permitiu-lhes criar uma fatia ideal para toasters. Numa palavra bem portuguesa: empreendedorismo.
@pastelariacamoes ⧫ Rua do Loreto, 63-65, Chiado, Lisboa.
Torre Bela, Thomas Harlan (1977)
Digam que foi tudo fabricado, que o MFA não chegava em estrondo de helicóptero para saudar os trabalhadores e que o Wilson era, afinal, um mercenário. Faço ouvidos moucos e sigo com os ensinamentos para a vida que este filme me deu. Se é tudo mentira, está bem apanhado.