Há dias ouvi um rapaz que faz viagens por todo o lado dizer que provou a especiaria que lhe mudou a vida na Austrália. Fiquei curiosa, mudar a vida de alguém não se assemelha em nada às outras funções por que as especiarias são conhecidas — entre elas, excelentes marinadas e fundos para tachos. Imagino inclusive que as duas atividades exijam CAE diferentes.
A especiaria de que falava era pimentão doce fumado. E fez questão de frisar que não estava em causa qualquer pimentão doce — era pimentão doce fumado. Um pouco como diz o nome. O apresentador do programa de rádio deixou-se ficar com aquela. Este jovem foi aos antípodas conhecer uma especiaria que lhe mudou a vida, seria uma desilusão ser confrontado com a hipótese alternativa de ter perdido duas horas entre o Martim Moniz e os Anjos, em Lisboa. Hoje, este homem mudado é capaz de temperar uns bifes, uns legumes ou até perfumar o ambiente da própria casa, graças à sabedoria que foi colher do outro lado do mundo num pó, afiança, raríssimo no nosso país.
Não vou estragar o dia a uma pessoa que passou a viver abençoada, mas dizer com veemência, numa estação de rádio, que se descobriu a pólvora quando há tanta gente que já vai na dinamite deixou-me a pensar se a volta ao mundo não teria sido sempre dentro do avião, sem ligação à terra. Resta-me desejar-lhe que se cruze em breve com os frasquinhos da Espiga que dizem paprika fumada — mesmo assim, a distribuir ostensivamente o caminho para uma existência refrescada, um segundo capítulo, a qualquer incauto que passe pelas secções de temperos. Desejo-lhe, como se vê, o melhor: ter as nossas certezas desafiadas é uma das grandes alegrias da vida.
Num intervalo de segundos, o mundo expande-se. O que julgávamos impossível é, afinal, mais uma hipótese. Mas é um jogo de azar. Quando se passa a idade dos nove anos, não podemos esperar que o fenómeno aconteça todos os dias; chegado a adulto, a forma mais eficaz de se sujeitar a ele é ir ao Galeto.
Numa das primeiras vezes que me sentei ao balcão, um homem de gravata pediu uma canja de arroz e um batido de melão. A frustração da minha visão do mundo nem sequer veio com o pedido. O garçon mandou executar sem censuras ou paternalismos, o que para um homem de 50 anos, de camisa e colete (de novo, as certezas sobre a vida), é inédito. Do outro lado do balcão, tento ainda recriar a harmonização, entre o cérebro e a língua. Ou aquele cliente sabe qualquer coisa de pouco inteligível para mim, julgando pela maneira decidida como disse melão, ou está de facto a fazer uma má escolha. Em qualquer das situações, veio ao sítio certo.
A expressão safe space nasceu primeiro para falar do Galeto. Provavelmente na época em que os donos de restaurantes eram ditos orgulhosamente capitalistas e não tinham vergonha de garantir que na cozinha estavam "autênticos mestres cucas, famosos no Brasil”, como se lê no Restos de Coleção. Este é terreno seguro para pedir-se exatamente o que se quer, sem que o olhar da sociedade seja castrador ou ponha a mais leve dúvida nas nossas escolhas. Se vai ser bom ou não é outro capítulo.
Não se trata apenas de desmanchar as convenções sobre o que vai bem com o quê. O Galeto desmancha as convenções sobre o que vai bem. Antes da renovação que pôs crumble de farinheira no menu, era bom comer mal no Galeto. Era uma garantia pessoal de humanidade sentar ao balcão e aceitar a inevitabilidade de sofrer com as batatas fritas, forrar o estômago a croquetes para não depender tanto de um combinado, ou ver o espetáculo dantesco de um bife tártaro ser massacrado — perdão, preparado.
A recompensa estava mesmo ali, do outro lado do balcão: o concierge da noite, enquadrado pela arquitetura de Victor Palla e Joaquim Bento d’Almeida. Antes da modernização da ementa bastou-me, por mais de uma vez, ver um garçon temperar uma salada mista com azeite, vinagre e showcooking — malabarismos para receber, de uns estrangeiros, “10 pauzinhos”, nas suas palavras precedidas de um piscar de olho.
Alguns viram um abuso da parte da matemática começar a ostentar mais letras do que números. Outros viram uma oportunidade e são agora os garçons no Galeto. Nº6 - MAIOnese + OVO = Nº3 - TARtaro - BACon. Com menos qualificações neste campo do saber, pode ser difícil fazer entender que quer uma tosta mista com ovo a cavalo. É por isto que uns de nós estão do lado de lá, a gerenciar pedidos e a fazer rolar o futuro da noite, e outros estão sentados de ombro caídos, a olhar de boca aberta.
Reagi com desconfiança ao make over que reduziu as cartas aos best sellers, mudou a loiça e acrescentou condenados a no sellers. Mas uma certa seleção natural fez o que tinha a fazer. Uma noite ousei experimentar a tosta aberta de endívia, roquefort e uvas. O garçon respondeu-me apenas que não havia uvas e não nos sujeitámos a falar mais no assunto. Ingredientes e pratos incómodos foram sendo assim afastados por um bem maior. O wasabi abandonou a sandes de rosbife para que ela cumprisse o desígnio de ser uma das melhores de Lisboa — a sandes aberta nº2.
Trocando as voltas ao que sei da gentrificação e ao que temi para o Galeto, estas mudanças foram para melhor. No Galeto come-se agora melhor, mesmo quando se tem saudades da baixaria. Para memória futura só temos o trabalho feito pela Ana Markl e pelo Luís Leal Miranda, em Conforme Combinado, um registo sério do que foi a carta icónica do snack-bar, com análise semiótica de cada velho combinado da casa e um elencar exaustivo das suas referências culturais. Historiografia.
Não é possível dizer-se que “antigamente é que era bom”. Era, boa parte das vezes, deplorável e, ao contrário do que sói ver-se no governo das cidades, no que estava bem não se mexeu. Ninguém terá saudades de pedir o meio-meio (metade do prato esparregado, metade batatas fritas negligenciadas) porque ainda o pode fazer; só sente falta de comer o clássico bolo de aniversário de pão de ló e doce de ovos quem não sabe que lhe deve chamar bolo Galeto e não há ataques de ansiedade com a hipótese de não voltar a comer pêssego à minhota, porque ninguém pede pêssego à minhota (é isso que significa o sazonal que aparece à sua frente no menu).
Do antigo menu ficam também os não ditos. Esforço-me por me sentar ao lado de senhoras que ainda arranjam o cabelo, porque elas sabem o nome das sobremesas que não estão na carta. A confiança no sistema deve ser cega. Quando ouvir um sénior pedir alguma coisa, procure o prato no menu. Talvez não o encontre, mas não se denuncie com um reflexo de estranhamento. Faça de conta que estava à procura de leite creme e quando o encontrar feche o menu como quem diz ‘vai ser mesmo isto’. Reprima todos os instintos de hesitação e demande, como quem nem queria muito mas um dia não são dias: taça semifrio. Dissipam-se os receios de perder a face porque um garçon do Galeto não estranha nada. Vai aparecer-lhe uma taça de soft icecream com sabor a ucal batizada com duas línguas de veado.
No processo pode ser abençoado com uma daquelas teias do destino: distrai-se com ninharias que se passam ao lado, o garçon não percebe bem, pergunta-lhe se é a delícia semifrio. Por princípio, faça-se de habituado e diga que sim. Vai passar a saber, desta maneira, que molotof, doce de ovos e soft icecream com sabor a ucal devem estar sempre juntos numa colher de sobremesa. Cá está o mundo a alargar-se mais um bom bocado.
Neste Frigobar —
Galeto
De todos os snack-bar como este falamos no passado: longa vida ao Galeto e aos seus trabalhadores. Não recusemos qualquer noite que lá possa ser passada.
Avenida da República, 14, Saldanha, Lisboa.
Restos de Coleção, José Leite
José Leite mantém desde 2009 um blogue com as histórias dentro da História nacional. Da publicidade antiga, à vida dos edifícios mais e menos icónicos, ou à evolução das cidades portuguesas, o Restos de Coleção é solução para quando não se sabe como procrastinar.
Conforme Combinado, Ana Markl e Luís Leal Miranda
Em 2019, os autores deste blogue, puseram os seus fígados à disposição. Provaram nove dos combinados do Galeto, pontuaram e anotaram todas as vezes que se cruzaram com António Lobo Antunes. Numa delas, pediu batido de morango.