Ontem, assisti à noite eleitoral horrorizada com a quantidade de deputados de extrema-direta que nos preparamos para ter. Espero que não digam pão. No caso particular daquela bancada prefiro pagar-lhes para se manterem calados — já que lá têm de estar — do que saber que lhes pagamos um ordenado e que ainda usam essa oportunidade para decidir coisas.
Esta reflexão foi feita pelo meu eu de cinco anos, a quem entrego os comandos quando a realidade está dolorosa. Como dizem os ingleses, “Catarininha take the wheel”. Enquanto estava nesse transe, apareceu na televisão, em miniatura, a fotografia de uma deputada do PS eleita pela círculo de Braga: majestosa e loira, o ângulo contra-picado e fundo branco faziam dela um anjo poderoso. Mais do que reconhecê-la, reconheci uma outra situação em que ela caminhava com elevação entre os normais: um dia vi Elisabete Matos na Popular do Capelo.
A Popular do Capelo é uma tasca daquelas com grelha instalada na montra e fica praticamente do outro lado da rua, para quem sai do Teatro Nacional de São Carlos. Para qualquer bailarino ou tenor é como ir à mercearia da rua de pijama e robe. Ainda assim, sempre tinha ficado mais clara para mim a proximidade das obras do que de um teatro de ópera, já que todas as vezes que ali entrei, almocei com trolhas, empreiteiros e serventes de obra.
As ruas traseiras do Chiado, em Lisboa, são um estaleiro permanente e, em hora de ponta, ver a soprano erguer-se de uma mesa, enquadrada pelo arco que divide as duas salas, foi como estar a fotografar uma cena neo-realista. A diretora do TNSC tem, como muitas cantoras de ópera, aquele ar de rainha da Disney — bondosa e poderosa, por causa da maquilhagem e da caixa torácica.
Tal como na fotografia na televisão em noite eleitoral, Elisabete Matos pareceu-me estar em ângulo contra-picado e a iluminar a sala com aquela iconografia de santa em aparição, mais alta e loura do que todos os outros e, depois de terminar a cena digna do acervo do Artur Pastor, fiquei a sentir-me mal por me surpreender com a sua presença ali.
O prego no pão da Popular do Capelo é muito bom e as batatas fritas são verdadeiras. O homem da grelha corta os pregos da peça de carne inteira a cada pedido, tempera-os como deve ser, com bastante sal e alho, e da minha experiência, não é preciso perder tempo em indicações do ponto da carne. Estamos perante um profissional e isto é razão suficiente para ir a esta casa de minhotos — de tal maneira que nunca lá provei outra coisa. Suficiente para mim, mas por alguma razão, na minha cabeça, não para Elisabete Matos.
Desde que trabalho no centro de Lisboa, habituei-me a partilhar mesas de tascas com gente de fato — especialmente homens — e com outros de calças roçadas e colete refletor — maioritariamente homens. O público de uma tasca é mais diversificado do que o Parlamento eleito: mais pessoas racializadas, mais gente que ganha o salário mínimo e, mesmo que em minoria, mais mulheres. A Provinciana, atrás do Teatro Nacional D.Maria II, é emblemática desta diversidade, a que se juntam os turistas.
O trabalho da Cátia, que recebe os clientes e gere a sala, é um tratado do que estou a atabalhoar: a tasca pode ser diversificada, mas cai melhor a uns do que a outros. Várias vezes fui mandada sentar passando à frente de quem era estrangeiro, porque eu “não andava ali a passear” — o argumento era dela, eu só concordava. Também assisti a um amigo, acabado de chegar, ser encaminhado para um lugar vago enquanto o seu chefe se mantinha à espera na rua, como na última meia hora, porque “o rapaz tinha de trabalhar e o outro tinha tempo”. A Cátia podia ter escrito que “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”, no entanto, prefere escolher quem espera à chuva e quem come uma chanfana apurada pela mãe ou umas caras de bacalhau com todos no quentinho. Pessoalmente, também me parece um trabalho com mais ação transformadora do mundo.
Acho que eu e a Cátia desconfiamos que a glamourização das tascas às vezes pisa o risco. O mundo inteiro cai em Lisboa e procura a melhor forma de comer como um local. Mas pela quantidade de vezes que vi estrangeiros comer salmão grelhado diria que, mais do que comer como eu, querem ver-me comer, e a ideia de ser atração turística faz-me sentir mais num freak show do que mereço. Ao mesmo tempo, esta conversa de soslaio ao estrangeiro e ao patrão tantas vezes corre como se ainda estivéssemos no tempo das tabernas que o Luís Pavão fotografou, ainda antes dos anos 1980.
Não vejo beleza nesse universo de pouco dinheiro, muito trabalho, abuso de mulheres e crianças, e o tantas vezes evocado apreço pelas pequenas coisas da vida está só no olhar de quem tem acesso às coisas caras da vida. E ainda assim, uma cabecinha nova como a minha tem, a fazer cócegas cá dentro, uma fetichização do passado e até — não vale a pena ser leve comigo — da pobreza. Só tenho a agradecer aos séculos que me antecederam por esta armadilha.
No dia em que avistei Elisabete Matos na Popular do Capelo, a evolução social estava com toda a força à minha frente. Não bastava uma mulher ser diretora artística do São Carlos — a primeira de sempre — e entrar num tasco sem pedir licença: na vitrine dos doces, lá estavam eles, todos metidos em frascos, em vez de taças de alumínio. Esta não deixei passar e perguntei a que propósito uma gentrificação daquelas.
O gestor da sala pôs-me no meu lugar dizendo que os frascos em questão são mais velhos do que eu. Um dia, em passeio por um sítio do género Bombarral, passou por um barracão abandonado que lhe pareceu ser uma fábrica de dentífricos abandonada. Decidiu investigar e o resultado foi uma receita de duas paletes de frascos sem tampa.
As suas capacidades de investigação não me pareceram apuradas, mas não sou conhecedora do setor de pastas de dentes em frascos de vidro. E não me atrevi sequer a questionar, porque rapidamente me avisou: para o cenário improvável de alguém aparecer a reclamar o material, tinha uma pressão de ar no armazém. Concordei que estava tudo no seu lugar.
Neste Frigobar —
Popular do Capelo
Pode estar aqui um dos melhores pregos da cidade, com o luxo de poder assistir ao espetáculo da sua preparação no primeiro balcão, de pé, com o seu individual de papel, indicativo de que não demorará muito. Entre o São Carlos e o Museu do Chiado, mais uma paragem cultural.
Rua Capelo, 8, Chiado, Lisboa.
Artur Pastor — O Povo no Panteão
Falta pouco para desmancharem a exposição com fotografias de Artur Pastor no Panteão Nacional, em Lisboa. Guardam-se as imagens da arte xávega do Estado Novo, tiram-se da parede as nazarenas vestidas a rigor (algumas a pousar, parece-me), metem-se numa caixa os pastores e os retratos de agricultores. Espero que acondicionem bem a fotografia do mergulho, que é uma maravilha. Vai ser uma pena. Vão lá antes de 6 de Fevereiro.
Panteão Nacional, Campo de Santa Clara, Santa Apolónia, Lisboa
A Provinciana
Uma tasca ou uma sucursal do relógio de Greenwich em Lisboa? Não sabemos. Há dezenas de relógios na parede, todos em madeira, todos feitos pelo Américo, um homem xilófago.
Travessa do Forno, 23, Rossio, Lisboa
Tabernas de Lisboa, de Luís Pavão e Mário Pereira
Publicado pela Assírio e Alvim nos anos 1980, hoje é uma peça rara de alfarrabista sobre as tabernas lisboetas, hoje desaparecidas. As fotografias de Luís Pavão mostram a arquitetura, os gestos e os hábitos — da bisca ao trabalhador a tirar um cochilo à mesa. Os textos de Mário Pereira fazem o retrato histórico e social e trazem uma ou outra anedota.