Há dias vi escrito celulite ocular e pareceu-me uma ótima expressão. É pena que tenha sido uma ideia da medicina que, verdade seja dita, tem muito jeito para inventar nomes, mas deprime bastante com as definições que lhes arranja. Infelizmente a ideia de celulite ocular não está hoje totalmente aproveitada e é até desvirtuada pela medicina. É uma oportunidade perdida de descrever o que provoca certa comida que, só com a relação estabelecida pelo olhar, instala-se no nosso corpo e provoca todo o tipo de doenças do exagero — demasiada pressão arterial, demasiadas glicemias, demasiada massa corporal.
Com menos mágica, falamos de ultraprocessados, o seguro de vida da vida moderna. Num momento de desespero, entrei num supermercado e trouxe uns waffles robustos e do tamanho de uma mão dentro de uma caixa de plástico transparente. Agarrei neles com ideia de os comer mesmo ali, longe da porta automática apenas o suficiente para que não estivesse constantemente a mexer-se. Pareciam-me, entre a oferta, os menos maus e francamente, não me enganei: merecem o Nobel da química.
A massa não é fofa, é tensa e gordurosa — mas não ao ponto de deixar os dedos brilhantes; os sabores não se encontram na natureza e ocasionalmente aparecem uns caroços de açúcar que dão gosto trincar. Se temos a agradecer a alguém esta maravilha, não é a cozinheiros, é certamente a cientistas. Numa recente Grande Entrevista, Nuno Maulide diz que se pudesse escolher ser autor de uma invenção, queria ter sido pai do plástico. Infelizmente na universidade de Viena, onde trabalha, ainda não está a viver os benefícios destes waffles.
Nesta disciplina da comida de laboratório, o Brasil merece ser reconhecido e mais vezes agraciado — por tentar muito, não necessariamente por acertar. Corri para a semana brasileira de outro importante supermercado para ter acesso às mais recentes inovações de um povo que investe nas ciências. A paçoquinha é um clássico. Durante décadas, gerações de americanos — do norte, com as suas manteigas produzidas in vitro, ao sul, com as paçocas — esforçaram-se por pôr valor acrescentado no amendoim, o que agora começa a ser subvertido, enquanto se propaga o retrocesso civilizacional: vários amendoins juntos — apenas e só — conseguem fazer uma pasta cremosa num robot de cozinha caseiro.
O mérito da paçoquinha é o de abrir caminho, o de mostrar-nos que é possível. O conjunto de Es e adoçantes que estão no seu rótulo são um tratado de ciência, agora ao dispôr da NASA. Não posso dizer que seja boa além da primeira ou da segunda dentada — mas eu já fui conspurcada por manteigas que são apenas amendoim, o que deixou com certeza, as suas sequelas.
O investimento do Brasil nos ultraprocessados que testemunhei na Expo2021 daquela grande superfície não está só neste e noutros produtos incapazes de apodrecer — cocadas de pacote, queijo coalho e concentrados de goiaba ou caju que, em vez de saberem, preferem meramente cheirar a goiaba ou caju. A este investimento dos privados junta-se o do Estado. A Cesta Básica está cheia de ultraprocessados e, segundo o podcast de investigação Prato Cheio, durante a pandemia, a assistência feita à população descambou e apoiou-se essencialmente nas doações da sociedade civil e de grandes empresas de processados.
O Guia Alimentar da População Brasileira, do Ministério da Saúde, orienta para que alimentos ultraprocessados sejam evitados, a bem de uma vida saudável. Mas “quem tem fome, tem pressa” — o episódio lembra a frase do histórico ativista pelos direitos humanos Herbert de Souza — e, enquanto não há uma política que pense a alimentação e a saúde de todos, empurra-se com a barriga e garante-se o direito humano com o que parece comida, mas não é.
Num dos seus episódios, o Prato Cheio pergunta “Pobre come qualquer coisa?”. A resposta de alguns governos estaduais parece ser que, se não têm pão, devem comer ciência — estando no século XXI, o brioche seria uma alternativa datada.
O exemplo é um bom ponto de partida para pensar como esta indústria está a ser tratada em outros pontos do mundo e leva-me a uma última evidência de que o Brasil deve ser consultado em matérias de implementação das inovações científicas. Antes dos anos 60, um doce verdadeiramente brasileiro podia levar um dia inteiro a preparar-se, mas o empreendedorismo bateu punho a ponto de conseguir substituir uma cultura de doces demorados por outra que assenta na bomba nuclear dos ultraprocessados: o leite condensado.
A história em detalhe é contada também pelo Prato Cheio. A Nestle ofereceu às donas de casa livros de receitas onde o leite e o açúcar eram substituídos pela ciência e tornou a lata do leite de moça numa unidade de medida: bastava esvaziá-la e enchê-la de leite, chocolate e o que mais a receita pedisse. Encontravam-se assim as proporções, sem precisar de balança, e a vida da mulher moderna estava muito facilitada por esse desenvolvimento científico a que alguns chamam marketing.
Em Portugal, o mais que conseguiram foi enfiar o leite condensado entre uma camada de natas batidas e outra de bolacha migada. E mesmo assim, ninguém de bom senso arrisca não perguntar o que é o doce da casa. No Brasil, refizeram-se livros de doçaria tradicional para incluir o leite de moça em beijinhos, no pudim de leite ou nos papos de anjo. O meu desafio: a Nestlé podia criar um refogado e fechá-lo numa lata com validade de anos — uma coisa que nos permitisse ter um fundo de tacho puxado em zero minutos e nos desse mais horas de vida para scroll no Instagram. A gente precisa.
Ocasionalmente, confronto-me com pessoas, de outra geração, que até certa altura da sua vida, só conheciam o alimento — hoje, dito “produto” — e não tiveram oportunidade de, ainda crianças, experimentar as maravilhas de pôr ciência na boca, deixá-la chegar ao estômago e ficar com ela no corpo irremediavelmente. Essas pessoas dizem que têm saudades das couves e dos enchidos de antigamente — talvez não só porque eram melhores, mas porque passaram momentos felizes a comê-los. A minha geração cresceu a comer qualquer coisa que fosse cientificamente certificada.
Na internet, Raíza Costa tenta emendar a mão e convencer-nos a fazer em casa o que nasceu em ambiente acético e controlado, com uma receita artesanal de leite condensado. Na realidade física, foge-nos o guilty pleasure para a tarte de maçã do gigante dos hambúrgueres e para os húngaros de geleia fluorescente. Os lacinhos folhados semi-industriais que o meu merceeiro vende a granel são cobertos de um açúcar em pó cientificamente adulterado e estão à frente da sua banca de frescos na lista da Time Out “As 8 melhores coisas para comprar no Graciano”. Lembram-me umas miniaturas de Filipinos que devo ter visto pela última vez aos 7 anos, à saída da natação. Sem renegar todos os bons momentos que a Olá nos deu, temos a nossa língua condenada a nunca se tornar firmemente gastrónoma. Resta-lhe o mestrado em química alimentar.
Neste Frigobar —
Prato Cheio, de O Joio e o Trigo
O podcast do projeto de jornalismo de investigação O Joio e o Trigo cinge-se à realidade brasileira, mas permite pensar em qualquer ponto do mundo — e seria um bom guia para um semelhante português. Os aspetos sociais, políticos, ambientais e económicos por trás das a comida são dissecados e a bateria de dados e factos de cada edição enchem realmente o prato.
Raiza Costa
Criadora de receitas e autora de uma presença digital criativa e divertida, é uma forte defensora de tudo quanto se pode fazer com as próprias mãos. Recusa o que vem em latas, mas não o que tem grandiosas doses de doce.