A lista de pratos que não cumprem promessas é maior do que seria desejável. Demasiadas vezes pedimos rancho e não nos aparecem lavradores de 1960 a tocar bombo e adufe, e nem toquemos na desilusão que é ver miminhos de vitela no menu e não aparecer um desses bichinhos bebés a subir-nos prontamente para o colo, enquanto nos lambe a cara com o que imaginamos serem beijinhos. Não é isto que acontece quando me falam em piscinas.
A minha memória vai mais rapidamente para a travessa que nos punham à mesa na escola, às sextas-feiras, do que para aquelas banheiras de água que os ricos têm em casa. Para ser completamente honesta, essas sim são uma desilusão, quando se cai de boca só se come cloro.
O meu entusiasmo com este prato estava apagado há pelo menos dez anos e voltou num desses momentos em que o cérebro se lembra de coisas aleatórias, ao ponto de revermos todas as ligações ilógicas — por onde chegámos aqui? — como um detetive a reconstituir a noite do crime. Era pico pandémico, se isso justifica alguma coisa, e procurava receitas que dessem conforto e trabalho. Sobretudo trabalho. Esta pareceu-me de um nível médio, ideal para umas receitas que andava a escrever muito ocasionalmente para o site da Sábado. Tinha tudo: desconhecida da maioria, uma história vinda da infância, a proeza de ser deliciosa.
Deixei as expectativas crescerem e não havia como não o fazer, aquele prato era tudo. Sentia de novo a excitação que vislumbra o fim de semana, a evidência de que o prato do dia não é peixe cozido, mas um puré de batata com bacalhau desfiado encostado às paredes da travessa e, no meio, uma cova para onde se verte um bechamel caseiro — uma piscina. Tudo alisado, polvilhado com pão ralado. Era também a prova de que, na nossa escola, éramos uma comunidade, comíamos o que mais ninguém comia nem imaginava que existe. Quem não quer esconder um segredo com alguém?
Dez anos depois, mantive o ritual tão inesquecível quanto óbvio: uma colherada de puré para outra de bechamel, valoriza-se a capa rija de pão e batata e desarranja-se o conteúdo da piscina com todo o cuidado porque, o efémero véu de pão que fica sobre o molho são os centímetros quadrados mais valorizados da mesa. Devem ser distribuídos só no final do primeiro serviço e apenas aos verdadeiros apreciadores. Não se gasta a capinha com quem a julga pela cor e acha tudo isto semelhante a uma papa maizena.
A minha primeira colherada foi com respeito extremo para com a capinha, que muito elogiei. O mesmo com a segunda e a terceira. Por esta altura não podia crer na cara do meu namorado (chamemos-lhe Tiago para que não se defina pela nossa relação; dá-se a coincidência de ser esse o seu nome). Dava a ideia de um desentusiasmo, vou arriscar dizer desilusão, mas quis acreditar que se tinha lembrado de algum problema do trabalho, do Benfica que não ia bem ou das cordas do estendal que ainda estavam enferrujadas e continuavam a obrigar-nos a escolher entre uma mesa de jantar na cozinha e um estirador.
Gostava de dizer que todas essas lembranças me arruinaram o jantar, mas foi o teste do tempo que me partiu o prato. Afinal, em verdade, a piscina é uma massa de pastel de bacalhau desengraçada, finalizada no forno — nem uma cebola picada, nem salsa, nem sequer uma fritura para colorir a boca — e um molho que é batota para tudo e qualquer coisa. É como tocar sempre a mesma tecla num daqueles órgãos para fazer casamentos — infelizmente não aquela tecla que dispara uma música inteira em playback. Alegraria qualquer bebé — ainda que possamos ter de discutir aqui quais os limites de ser bebé — e a capinha que destinei ao final da refeição, como uma pré-sobremesa premeditada, é mais um tom de bege. Podia ser papa maizena.
A receita escreveu-se e a história também, a piscina tem qualidades que vale a pena conhecer, ainda que não possa dizer o mesmo da minha memória. É um prato que vai agradar a qualquer um, dos oito aos oitenta — pela textura, sobretudo aos de oito e oitenta; é um ponto de partida onde só há espaço para melhorar, dá vontade de trocar esta por uma massa legítima de pastel de bacalhau ou mesmo de substituir o bacalhau por couve portuguesa ripada, como faz o Pedro Monteiro no seu pastel de caldo verde, na Fábrica da Musa, em Lisboa. Pôr camarões a nadar no molho é outro caminho e fazer disto um mac ‘n’ cheese à portuguesa parece-me uma incursão inevitável.
Os sabores são bastante limpos e, diria, foscos. Dá para pôr-lhes qualquer coisa em cima, esticar e comprimir, manchar e melhorar. Um pouco como fazemos com o passado.
Piscina
Ingredientes:
4 batatas médias
2 postas pequenas de bacalhau
2 colheres de sopa de manteiga
1 colher de sopa de amido de milho
400 ml de leite
Noz moscada
Pimenta preta
Pão ralado
Preparação:
Cozem-se as batatas para puré e as postas de bacalhau. Depois de cozidos, deitam-se os pedaços de bacalhau num pano, sem espinhas nem pele; espreme-se o excesso de água e, com o pano fechado, bate-se com uma colher de pau no bacalhau para o desfiar — até ficar em fiapos.
Faz-se o puré de batata até atingir uma consistência firme mas cremosa (pode adicionar-se algum leite e manteiga para atingir essa consistência). Tempera-se com sal, pimenta e noz moscada. Adiciona-se o bacalhau e envolve-se até atingir uma mistura homogénea.
Para preparar o bechamel, derrete-se a manteiga em lume baixo, junta-se o amido de milho e mexe-se até absorver toda a gordura. A pouco e pouco junta-se o leite, sempre mexendo com uma vara de arames para desfazer os grumos. Depois de juntar todo o leite, cozinha-se em lume brando até ficar espesso, mas ainda líquido. Tempera-se com sal, pimenta e noz moscada.
Numa travessa, coloca-se o puré revestindo as paredes desse prato — deixa-se um buraco (espaçoso) no meio onde se deita depois o bechamel. Polvilha-se toda a superfície com pão ralado e leva-se ao forno para dourar.
Neste Frigobar —
Fábrica da Musa
A minha avó diz do tremoço que “puxa a cerveja”. Diz o mesmo dos caracóis e a seguir do camarão. Depois conta que, na véspera da minha mãe nascer, foi à Portugália da Almirante Reis beber uma girafa e, perante isto, não posso confiar que sejam realmente estes os pratos que “puxam a cerveja”. Posso, no entanto, confirmar que o que se come na Fábrica da Musa nos faz voltar ao bar repetidas vezes, seja para atestar os copos ou para pedir mais pastelinhos de caldo verde, nuggets de queijo, pastéis de vento de berbigão e sandes de língua.
@fabricadamusa ⧫ Rua do Açúcar 83, Marvila, Lisboa